Longe da Pátria, Lugar de Saudade

Restava a leitura. Ao menos trouxera livros em quantidade, uma mala cheia, para prevenir os tempos futuros , com muito tempo e sem futuro definido. A comissão na guerra colonial fora agravada para três anos.

Na partida do “Figo Maduro”, tivera a ajuda do camarada Constantino, rapaz simples e sem família por perto, que conhecera ali na sala de embarque.

Na hora da despedida só lá estava a companheira como combinado:

– Serás sempre o homem da minha vida. Volta amor!

– Adeus querida companheira. Voltarei ! Cuida da filhinha.

-São casados há muito tempo ? – perguntava o soldado solitário, baixote e com sotaque serrano, já na fila para a saída:

– Há dois anos!…Já temos uma filhota.

-Ah! Pois…Vê-se que são muito chegados. Quer ajuda ? – um sorriso ingénuo mostrava a sua boa alma.

– Bom!…Essa mala está pesada. Está cheia de amigos !

– Amigos ?

– São livros !

*

Sete e meia da tarde, hora do noticiário do Rádio Clube de Moçambique.

Notícias de conveniência mas sempre se percebe alguma coisa nas entrelinhas. Estranho, a música de circunstância prolongasse e não é dada qualquer explicação.

-Teixeira ! Teixeira! O Valter diz para chegares à Oficina de Rádio.

Nos postos estrangeiros estão a dar notícias de um golpe de estado em Lisboa!

Um salto do beliche superior, como sempre fazia quando de madrugada

se ouvia um rebentamento por perto. Mas desta vez não era preciso levar a G3.

A ampla caserna tinha um aspecto soturno, com as dezenas de catres metálicos como único mobiliário, quase deserta àquela hora do rancho. Era a melhor altura para ler ou escrever, sentado no beliche, sem mosquitos a apoquentarem. Como escrever não tinha aquem, com a companheira detida na prisão da PIDE/DGS em Caxias, restava a leitura, na circunstância da obra, do “Radicalismo Pequeno-Burguês de Fachada Socialista”, uma edição Avante! na clandestinidade.

Na oficina de rádio sintonizava-se ora a BBC, ora uma emissora da África do Sul. O inglês dos circunstantes era fraco, percebia-se “golpe militar “, “general Spínola”, “Marcelo Caetano”, “Lisboa “, “Largo do Carmo”, e pouco mais :

-Será um golpe militar do Spínola? – questionava o Valter, razoavelmente informado do que se conspirava na Pátria distante.

-Ou da extrema direita militar !?… Não se ouve falar do movimento dos capitães! Vamos escutar mais um bocado.

Durou mais uma hora a dúvida e a angústia. Por fim, uma rádio da África do Sul começou a transmitir o despacho habitual de Lisboa, de Luís Pereira de Sousa, que o R.C. de Moçambique não transmitira: “No Largo do Carmo, o Movimento das Forças Armadas obrigou à deposição do poder e Marcelo Caetano foi acompanhado pelo general Spínola ao aeroporto, a caminho do exílio”.Ouviam-se em fundo as rajadas de G3 à ordem do capitão Salgueiro

Maia.

– É o Movimento de Capitães! É o Movimento de Capitães! – lágrimas, abraços, sorrisos.

Mais lágrimas no regresso à caserna, libertando um soluço cravado no peito há meses, anos, décadas. O “Pedrógão” e o Silveira apareceram solícitos:

-Já sabe dos acontecimentos em Lisboa? Parabéns ! – gente boa e solidária, soldados do Portugal amordaçado, quebrando as grilhetas num abraço fraterno que o poeta registou:

“ No fundo quem vai à guerra é aquele que a não faz! “

Nessa noite de 25 de Abril de 1974, em Nangade, Cabo Delgado, Moçambique, a milhares de quilómetros da Pátria, lugar de saudade, mais de duas dezenas de alferes milicianos, furriéis, soldados, deram se os braços e cantaram, “Grândola vila morena, terra da fraternidade, o povo é quem mais ordena , dentro de ti ó cidade! ”.

 O fascismo finalmente fora derrubado. Agora era necessário acabar com a guerra!

Armando Sousa Teixeira

(capítulo do livro : “Da Guerra Nunca se Volta”)

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