Nas nossas conversas de ”tertúlia” na Cooperativa Popular Barreirense, falava-se muito da repressão política e das torturas aos opositores ao regime, aplicadas pela PIDE/DGS, depois de democratas serem presos. Passamos a ter consciência do risco que se corria, mas a nossa consciência era superior ao medo e continuámos a lutar pela Liberdade. Mas….
Fui preso 01/07/1971, eram cinco horas da madrugada quando os agentes da PIDE me invadiram a casa na Vila do Barreiro, onde vivia com a minha companheira e meus dois filhos de 3 e 7 anos. Tinha eu 34 anos. Depois de eles revolverem toda a casa à procura de documentos comprometedores, que não encontraram, encontrando apenas uns posters da CDE com a figura de Catarina Eufémia, a pesar de existir um stencil já batido que estava escondido atrás do esquentador na chaminé da cozinha, para ser duplicado na duplicadora da cooperativa naquele dia, para informar a população das prisões de dois camaradas. Não resisti à ordem de prisão na esperança de ser libertado em breve, pensando que eles só tinham conhecimento da minha atividade de democrata da CDE que participou na organização e mobilização das pseudas eleições de 1969.
Fui enfiado num automóvel preto, até ao posto da GNR no Barreiro onde meteram outro preso, operário da Lisnave. Dali fomos levados para a prisão na Rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Nesta prisão, num 19 ou 29 andar, numa sala ampla, completamente vazia de mobiliário, sem cadeiras ou mesas, já lá se encontravam muitos trabalhadores presos, de pé encostados às paredes, na sua maioria, ou mesmo todos, operários vestidos de fato-macaco e outros fatos de trabalho. Eu entrei, um pouco mais limpo e ao verificar que não tinha onde me sentar, sentei-me no chão, encostado à parede.
Um pide espreitou pelo postigo da porta e ao ver-me sentado, entrou na sala e ameaçando-me obrigaram-me a ficar de pé. Estávamos todos à espera do 19 interrogatório. Até que chegou a minha vez de ser levado para a sala de interrogatório. Naquele interrogatório que não foi violento fisicamente, fizeram perguntas sobre o PCP, o que eu neguei, dizendo que era apenas um democrata, o que eles já sabiam.
Perguntaram se era da ARA e eu disse que não sabia o que era isso da ARA. Sobre colegas de trabalho, ao que eu respondi que apenas tinha duas subordinadas como empregadas de balcão, sendo uma a minha mulher e que não percebiam nada de politica e que não tinha mais contactos.
Findo o ¡interrogatório o “chefe” disse para o outro pide: Este ainda está muito verde, tem de ir amadurecer para ser espremido. Depois fui transportado numa ramona para o reduto norte da prisão de Caxias e metido numa pequena cela, isolado durante 29 dias, sem qualquer camarada e sem visitas. Enquanto estive isolado desconhecia o que a Pide sabia a meu respeito e a sua fonte de informações. Só durante a tortura do sono e dos espancamentos é que me fui apercebendo que eles até sabiam o meu pseudónimo de membro do PCP e transportes de camaradas com o meu automóvel. Durante os quatro dias e noites da tortura do sono, a certa altura trataram-me pelo pseudónimo, o que me surpreendeu. As agressões com cassetete e socos nos braços e pernas eram diárias e constantes, não me deixando sequer sentar-me, para eu lhes dar nomes, principalmente de quem me convidou a aderir ao Partido. Cheguei a gritar-lhes para me matarem. Havia pides menos agressivos e outros mais agressivos, trazendo para as ofensas, maus comportamentos, inventados, da minha mulher. Enquanto estive só, isolado, procurava passar o tempo andando para trás e para a frente 2,5m ou 3, desde a porta até à janela gradeada que dava para o morro das traseiras, não se vendo mais nada senão as formigas a subir e descer transportando os bocadinhos de pão que eu lhes mandava e também fazendo peças de jogo de xadrez com miolo de pão amassado, que colocava na janela a secar, para fazer conjunto com uma espécie de tabuleiro desenhado a Iápis num pedaço de papel.
A minha grande preocupação durante o isolamento, antes da tortura, era ter que resistir e não denunciar nenhum camarada. Para isso agarrava-me a imaginar o que passariam os filhos (3 de cada camarada), um que me fez o convite para aderir ao PCP, e outro que era chefe na Lisnave, meu grande amigo. Essas crianças deram-me força para resistir, que digamos não era fácil para ninguém.
Tive de confirmar alguns transportes, que eles já sabiam, no meu carro com 15.000 Km, praticamente novo, que foi apreendido, ou melhor roubado por eles, e que reverteu a favor do Estado por andar ao serviço da oposição. Principalmente durante as eleições fantoches de 1969.
Durante o período do isolamento e da tortura não tive visitas de ninguém nem da minha companheira, apesar das várias tentativas dela, que culminavam geralmente com ameaças, apesar da presença dos dois filhos de 3 e 7 anos que a acompanhavam.
Só tive a primeira visita dela, sem os filhos, alguns dias depois de ter regressado à cela, vindo da tortura. Mais tarde, já não me recordo quando, fomos transferidos para o regime normal, uma sala grande com muitos beliches e uma mesa comprida com bancos compridos de cada lado. Ai encontrámos muitos democratas que já tinham passado pelo mesmo, até sermos transferidos para o Forte de Peniche a 25 de Fevereiro de 1972 (salvo erro) para cumprir o resto da pena.
A adaptação à prisão no Forte de Peniche não foi difícil. Lá encontrei ótimos camaradas, mais experientes e cultos que contribuíram para essa adaptação. Tinha visitas mais regulares, sendo o mais difícil era não poder abraçar os meus dois filhos e a minha mulher, só os vendo no parlatório através das vidraças, mesmo assim vigiados pelos guardas prisionais. Mas os meses foram passando com aquela boa companhia e a 19 de março de 1973 fui finalmente libertado.
Enquanto estive no Forte de Peniche, recebi em carta registada, violada pela direção da prisão, com uma comunicação da empresa, Companhia Singer, que tinha sido dispensado (despedido) dos seus serviços com a justificação de ter faltado ao trabalho por demasiado tempo, despediram-me quando faltava 3 meses para ser libertado.
Finalmente deu-se o maravilhoso acontecimento da Revolução 25 de Abril de 1974 originado pelos jovens capitães do MFA que libertou o Povo Português da tenebrosa Ditadura Fascista que durou 48 anos.
Na manhã de 25 de Abril abandonámos os trabalhos de construção civil na Cruz Quebrada e fomos todos apoiar os militares de Abril, no Cais do Sodré e no Largo do Carmo.
A prisão, embora tivesse sido a coisa mais desagradável da minha vida, fortaleceu a minha consciência de classe, que já era forte porque eu comecei a trabalhar aos 11 anos como marçano e conheci a miséria muito cedo durante o fascismo, que me permitiu continuar a lutar e a acreditar que o Regime Democrático e o Sistema Económico Socialista um dia será implantado em Portugal, apesar de eu já cá não estar.
Como é possível existirem regimes políticos do sistema económico capitalista tao violentos que torturam e matam pessoas boas e honestas que não praticam atos violentos? (2024)
Depoimento de Faustino Dionísio dos Reis – 86 anos – Ex. preso político em 1971/73