Quando, pela primeira vez, me falaram dela, já era “espigadota”. Tem um ar saudável, justo, diziam me, parece que nasceu no campo. Outros, com ar mais sabedor, alegavam: veio ao mundo na cidade, parece que na periferia.
O certo é que fecundou num ventre pobre. Pode dizer-se que brotou da miséria, mas também do trabalho, duro, árduo, da luta, corpo a corpo, palavra a palavra, ideia sobre ideia. Cresceu nas perseguições, nas torturas, nas prisões.
Sabe-se que saía nos primeiros de Maio para voltar ao cárcere dias depois. E aí germinava, crescia.
A primeira vez que a vi foi numa sala cheia de gente, de gente escondida, sem rosto.
Lembro-me que tinha uma face séria, mas doce, um sorriso breve, por vezes repreensivo, mas era fascinante, impunha-se a quem se aproximava. A sua voz era serena e firme, o seu movimento ondulante, penetrava na nossa razão e depois albergava-se no nosso coração.
O tempo passava e, de quando em vez, recordava-me dela, isto é, obrigavam-me a recordá-la. Em casa, na aflição da vida, duas crianças para comer e educar, nos transportes porque eram caros, no emprego porque ganhava pouco, no sindicato porque queríamos transformá-lo para a defesa dos nossos interesses, no cheiro das ruas, porque eram nossas e lá nos juntávamos, assim de repente, e, depois, também de repente, tínhamos que desaparecer à frente da polícia.
Comecei a gostar dela. Éramos jovens e isso bastava.
Aquando da prisão injusta de um amigo, meu conterrâneo, encontrei-a na rua e um impulso irresistível levou-me a abraçá-la.
Não demorou muito que numa manhã ardente, acordasse sobressaltado e o meu primeiro pensamento tivesse ido para ela.
Decidido vou à cidade como muitos amantes dela fizeram, todos ao seu encontro.
Encontrei-a alegre, feliz, expansiva, num ou noutro momento ansiosa, impaciente, desassossegada, mas sempre com um cativante brilho nos olhos, um sorriso muito mais alargado, de orelha a orelha, estas bem abertas para não perderem nada, a gritar bem alto, a distribuir cravos vermelhos aos milhares. E todos lhe davam vivas.
Estávamos em Abril e marcámos encontro para Maio, onde nos voltámos a encontrar.
Parece que já foi há muito, muito tempo.
Há dias encontrei-a, foi a 12 de Março, e para espanto meu, vejo-a jovem, vigorosa, serena, digna, séria, a cantar, a desfilar nas ruas do meu País, a gritar, a avisar: aqui estou eu, pronta, a cumprir-me.
É impressionante, comovente, a sua força.
Estou feliz por vê-la assim. É eterna a sua juventude.
Chama-se REVOLUÇÃO em Abril de 2024.
Nuno Soares