Tempo exaltante aquele que leva à Câmara Municipal um punhado de cidadãos. Foram 19 que então iniciaram um trabalho titânico neste Barreiro, lugar de uma beleza natural, banhado por dois rios e dois grandes lagos, o estuário do Tejo e enorme bacia do Coina. Dois vales e seu núcleo central em socalcos continuados – o mercado 1º de Maio, o Alto do Seixalinho, o Alto da Paiva, Santo António e a Penalva, cerca de 10 metros acima do nível do mar.
Coube a estes cidadãos começar a devolver o Barreiro aos seus habitantes, a realçar o seu papel na história, nos descobrimentos, a reaver-lhe o orgulho e a procurar voltá-lo de frente para os rios, para que possamos, todos, sentir, cada vez mais, prazer em aqui viver, da ponta do Mexilhoeiro e bico da Passadeira, até Coina, Penalva e Bairro da Liberdade – do centro da Cidade à periferia.
Foi uma tarefa gigantesca vivida por homens e mulheres temperados no trabalho e no saber num Concelho cuja sua principal unidade económica e empregadora – o maior complexo industrial de química pesada do país – se encontrava em degradação. E os dramáticos problemas urbanos e ambientais?
O que fizeram ao Barreiro, os males de que foi vítima, não terão paralelo em qualquer outro concelho. Lugar naturalmente aprazível, à beira do Tejo e do Coina, de agradáveis e limpas praias fluviais os efeitos da actividade da indústria química foram devastadores, que torna o Barreiro negro, asfixiante, ocupam-lhe vasta zona ribeirinha e extenso areal, da Praia dos Moinhos ao Bico da Passadeira, aterram enorme área do Tejo e a ai instalam um terminal de líquidos, poluem a níveis intoleráveis a atmosfera, com efeitos terríveis nas pessoas e nos edifícios, contaminam o estuário, de onde desaparecem o peixe e o marisco, ocupam vastos terrenos, eliminando vinhas, hortas, marinhas, pinhais e eucaliptais, desde o Lavradio à Quinta da Lomba, procedem à demolição de património edificado, como a velhíssima fonte na Quinta do mesmo nome, apropriam-se de estradas municipais, sem contrapartidas. A zona fabril cresce para zona errada em detrimento do espaço urbano.
Olhar este nosso Barreiro, cinzento, asfixiante, sujo, pesado, doía-nos, mas tínhamos um propósito, iniciarmos um trabalho que o fizesse evoluir para a sua tonalidade azulada, a caminhar para a beleza natural do Tejo e do Coina.
Árdua era a tarefa que nos esperava. Para lá chegarmos, uma ideia-chave nos enchia a garganta. Primeiro, é preciso Democratizar o Município! Mãos à obra. E é com emoção que recordamos a história. Fixemo-nos nos quinze dias que sucederam ao dia 25 de Abril de 1974… A ideia estala. Ocorre a todos. Vai de boca em boca. É o povo anónimo. São os que lutavam no terreno contra o regime. São os que, com a CDE, participaram, em 1969 no II Congresso da Oposição, em Aveiro, e em eleições que ficaram célebres. São os que, em Abril de 1973, participaram no III Congresso e, em Outubro na dura batalha eleitoral contra a União Nacional fascista.
Logo no dia 25, 5ª feira, ao fim da tarde, no Largo do Casal, houve uma expressiva concentração popular. No dia 26, 6ª feira, no Cine-Club teve lugar uma importante reunião. Os corações batem forte. E agora? Que fazer? É urgente decidir. A multidão não cabe no Largo Casal. Inicia-se um desfile pelas ruas do Barreiro. Dia 27, sábado, concentração e comício no Parque, junto à Estátua. Aí, foi realçado que …Estamos em hora de contentamento. Não estamos habituados a viver em liberdade. Ainda sentimos medo. Ainda desconfiamos. Devemos adaptar- nos com rapidez a novos hábitos. A tristeza deve desaparecer dos nossos rostos! A amizade e a solidariedade devem ser a base da nossa vivência. Temos de construir um Portugal Livre, Progressivo, Democrático…
Sucedem-se os encontros, as concentrações, os desfiles, os comícios, as caravanas… O povo está na rua. Quer saber tudo. No dia 29, 2ª feira, reunião, à noite, nos Penicheiros. A Comissão ia nascendo, a sua composição estava praticamente definida. Para a tomada de posse legítima, legal, embora integrada no Processo em curso, desfilamos a memória que recua a 1969… Ao acto eleitoral para a Assembleia Nacional fascista. Então, a CDE, em condições de grande desvantagem, ganha as eleições, nas urnas, em todas as freguesias do concelho – Barreiro, Lavradio, Palhais. Vitória ignorada, mas a nossa memória não é curta. Agora, aquele resultado significa a legitimidade da tomada da Câmara.
Depois, falta a tomada de posse oficial. A ideia é que o Barreiro esteja bem representado na Câmara por uma Comissão Administrativa verdadeiramente democrática. Nome daqui. Nome dali. “A lista já vai longa”! ”Não importa”. “É imenso o trabalho a realizar”. “O Barreiro está degradado. Com a sua dignidade ferida”. Iniciam-se contactos com o MFA. A Junta de Salvação Nacional fora constituída. Dissemos, entre nós: “a posse do novo Executivo Municipal tem de ser dada pela Junta de Salvação Nacional”.
E o leque de nomes alarga-se. São muitos os cidadãos empenhados, representativos das mais diversas opiniões e áreas socioprofissionais. “Este que é advogado”. “Aquele que é engenheiro”. “O outro que é economista”. “Todos, pessoas muito sérias”. “Alargam a representatividade”, diz um. “Não aceitam”, clama outro. “São democratas”, concluem todos. Feitos os convites, um, Vicente Bolina: “não posso aceitar, com muita pena, porque estou na frente sindical e não me resta tempo”. Ninguém mais recusa. Sem qualquer objecção, foi escolhido o Presidente. A lista fica composta com 16 cidadãos. Dia 30, 3ª feira, cinco emissários deslocam-se à Cova da Moura. “Major Melo Antunes: queremos tomar posse legalmente”. Tudo fica acertado.
É nomeado o tenente-coronel André Infante como delegado da Junta de Salvação Nacional para dar posse à Comissão Administrativa que iria governar os destinos da Câmara Municipal do Barreiro até às primeiras eleições autárquicas livres – Dez.º de 1976.
1º De Maio. No Barreiro realiza-se a maior manifestação de sempre!
Dia 4 de Maio, sábado. Tudo a postos. Quando chega ao Barreiro, o oficial manifesta o desejo de se incluírem operários e mulheres. De acordo. Incluídos dois operários e uma mulher, a Comissão Democrática Administrativa seria formada por 19 elementos. Acordaram-se os preparativos finais para a tomada de posse.
Dia 6 de Maio, 2ª feira. 10 horas. Salão Nobre da Câmara Municipal a transbordar de Povo. Tomaram posse, após juramento, dezanove cidadãos – uma mulher e dezoito homens. Na presença do tenente-coronel André Infante, delegado da Junta de Nacional. São investidos, após juramento: 9 licenciados (matemática, história, engenharia, farmácia, economia, direito), 1 metalúrgico, 1 ferroviário, 3 empregados bancários, 1 estudante, 1 comerciante e 3 quadros administrativos. Assim, ficou garantida a legitimidade e a legalidade da Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Barreiro, saída do 25 de Abril.
10 De Maio. Primeira Sessão Ordinária da Câmara. Distribuição de Pelouros. Foram constituídos sete Grupos de Trabalho: Grupo Coordenador, Hélder Fráguas, José Alves Pereira, Hélder Madeira, Alfredo de Matos. Grupo Um: Secretaria, Repartição Técnica, Tesouraria, Fiscalização de Impostos, Mercados e Feiras, Aferições: José Alves Pereira, Aldino Ramos, Alfredo de Matos, Júlio Amado, José Silveira Lopes. Grupo Dois: Serviços de Saúde, Higiene e Limpeza, Sanidade Pecuária e Matadouros: Nuno Soares, Manuela Covas, José Ramalho, Júlio Militão. Grupo Três: Serviço de Obras, Jardins e Arborização, Cemitérios, Instrução e Biblioteca: Carlos Maurício, José Milheiro, Hélder Fráguas. Grupo Quatro: Serviços Municipalizados, Secretaria e Tesouraria: Hélder Madeira, Joaquim Caetano. Grupo Cinco: Serviços de Águas e Saneamento dos Serviços Municipalizados: Joaquim Matias, Raul Malacão. Grupo Seis: Transportes Colectivos e Oficinas dos Serviços Municipalizados: José Antunes, Manuel Bucho, Álvaro Monteiro.
Foi de facto uma tarefa exaltante! Dezanove cidadãos deram início à grande mobilização popular indispensável às transformações necessárias. Imerge, por todo o concelho, uma vasta rede de comissões de apoio, de moradores, de bairro, de rua, e muitas outras para tarefas especializadas. Hoje, pensar o Barreiro de há 40 anos. Recordá-lo como era, cinzento, asfixiado e militarmente ocupado. Mas terra de esperança. Sentir o dia-a-dia de quem aqui vive, estuda, trabalha e usufrui os novos espaços criados. Pensar nas muitas mulheres e homens que, connosco, desde aquele 6 de Maio de 1974, até ao limite do seu saber e energia, sem pedir para si quaisquer benefícios, protagonizaram o início de gigantescas mudanças. Voltamos a adquirir o prazer de viver. O Barreiro começa a ser devolvido aos seus habitantes. Álvaro Velho, do Barreiro, companheiro de Vasco da Gama na rota marítima para a Índia, o primeiro cronista do que viu, sentir-se-ia orgulhoso da sua terra.
O Barreiro iniciou uma nova etapa no seu desenvolvimento e na melhoria da qualidade de vida das suas populações. É vê-lo, hoje. A diferença é enorme. Apesar da vida de cada um, por culpa alheia, se tenha vindo a agravar, aprofundando-se gravemente as desigualdades sociais com o empobrecimento brutal da esmagadora maioria da população, e os municípios sofram grandes restrições financeiras e perda de muita da sua autonomia, os indicadores de níveis de satisfação, de bens e de serviços municipais têm colocado o Barreiro, na Península de Setúbal e no País, entre os concelhos mais avançados. Valeu a pena!
Barreiro, 6 de Maio 2014
Alfredo de Matos